sexta-feira, 17 de dezembro de 2010

As aventuras de Lady Alice.


00h00min, a janela está fechada. Thauany tem mania de fechá-la para que eu não saia (e também acredita que algum ser sobrenatural vá entrar por ela), mas esquece sempre da janela do quarto de costura da sua mãe ou da lavanderia. Verifico se ela está dormindo, e fujo por uma fresta da janela de metal do outro quarto até o telhado. Encontro Nino, o siamês das filhas do Valdemar, o vizinho. Ele sempre costuma passear esse horário. Nino já foi apaixonado por mim, mas deixei bem claro que não sou tipo de gata que se apaixona por qualquer um. Aliás, fui ainda mais clara; não me apaixono por ninguém. Mas confesso que seus olhos azuis me atraem.
- Oi, Nino. Observando a lua?
- Alice! Que bom que apareceu.
- O que houve?
- Estou me sentindo sozinho...
- Não seja patético, Nino. Tem de ser mais viril, assim como os cães.
- Sabe como é... As noites são perigosas...
- Gatos de raça são mesmo uns medrosos!
Ouvia-se um miado doloroso nas ruas de baixo. Era típico algum gato em apuros nessas redondezas onde tinham tantos cachorros de ruas ou gatos malandros que adoravam botar medo nos que tinham um dono.
- Ei, Nino. Ouviu isso? Vamos lá ver!
- Perdeu o juízo?!
- Deixa de ser medroso!
Descemos até o escadão. Nino tinha os pêlos da calda eriçados de tanto medo. Segui em frente, para protegê-lo. Passamos pela ruazinha escura até a outra rua. Estava deserta, afinal, já era de madrugada e a rua tinha pouca iluminação. Na verdade tinha apenas um poste de luz ligado. Aquela luz laranja e ofuscada iluminava a entrada de um beco. Fora de lá que veio o barulho – é de lá que vem todos os barulhos. Fomos até lá (com muita relutância de Nino). Logo no início tinha um gato cinza, magricela, os olhos verdes – um deles tinha uma cicatriz.
Cheguei logo peitando, comigo não há rodeios. Aquele gato tinha cara de relaxado, e devia agüentar nem mesmo uma briga com um sabiá.
- Que ta pegando, chefia?
Usei meu vocabulário de “maloqueiro”. Aprendi em uma das conversas da Thauany. Ela disse que os malandros da rua falam assim, e que tinham de usar essa linguagem para se comunicar com eles, caso contrario não compreendiam.
Aquele gato metido me estudou por uns longos dez segundos. Pra ser sincera eu senti uma ponta de arrependimento pela malandreza súbita da minha parte.
- E quem vocês pensam que são?
- Olha, somos perigosos, ta bom?
- E é? Gatos com coleira não são perigosos.
- Como se vocês manés, magricelas metidos a gângster, valessem algo!
O “cinzinha” grunhiu. Vinha em nossa direção.
- Olha o que você fez, Alice!
Sussurrou Nino. Capaz de seus pêlos estarem caindo de tanto medo.
- Ora, ora, ora... Veja se não é Lady Alice.
E surgiu do fundo do beco um gato branco, peludo, e ao contrário do resto, não era magro e raquítico. Era manco. Pimpão é seu nome.
- É um prazer vê-lo, Pimpão. – Dei as boas-vindas.
- Acalme-se, Alex.
O gato cinza recuava. Era um bobão, não agüentaria dez minutos de pancada comigo, tenho certeza.
- É, acalme-se, Alex. – Provou Nino.
- Vejo que está acompanhada...
- É, esse é o Nino, gato do vizinho.
- Prazer, Nino.
- Oi...
Nino era mesmo um babaca. Não podia demonstrar medo, mas acho que essa palavra estava tatuada na sua testa.
- Bem, o que devo a honra da sua presença por aqui, Lady?
- Sabe qual é, Pimpão? Nino e eu estávamos numa partida importante de xadrez, e um barulho muito alto nos atrapalhou, e veio daqui. Daí viemos pedir para que fizessem menos barulho.
- Perdoe-nos, Lady. Talvez exageramos na festinha.
- Festinha?! Tem ração com naguetes? – Disse Nino.
Mas era mesmo um paspalho esse gato!
- Talvez vocês queiram entrar para ver...
- É muita gentileza sua, Pimpão. Mas Nino e eu ainda temos que terminar aquela partida de xadrez, não é, Nino?
- Ora, vamos entrar um pouquinho, Alice. Estou faminto.
- Você ficou idiota?!
- Entrem, entrem. Será um prazer recebê-los...
Gato tinhoso! Vai é fazer picadinho da gente. Nino era mesmo um mané, sempre batendo bola fora. Dois gatos pretos se aproximaram. Não adiantava recuar, nos seguraram e nos arrastaram até o fim do beco. Nino como esperado gritava feito louco por socorro. Lá tinha dois gatos siameses presos contra a parede pelas patas com esqueleto de sardinhas. Clichê.
- Temos mais convidados.
- Me soltem, seus fanfarrões! Deixa só a sociedade ser adepta a escravidão a gatos pretos e vocês vão ver o que é bom pra toce!
- Cale-se, sua mimada! – Gritou Pimpão. – Já te suportamos demais. Perambula por ai, achando que é alguém, achando que tem poder. Quem manda nessas áreas somos nós!
A turma dos gatos vagabundos miaram em concordância.
- Pegamos esses siameses andando por nossas bandas. – Disse o gato cinza da entrada.
- Vocês são uns armadores. Duvido encararem a turma do Pelé no centro de Diadema. Aqueles são gatos de verdades. Não são como vocês, comedores de lixo e andarilhos prodígios. 
- Alice, você bem que poderia ficar quietinha... – Comentou Nino, tremendo as patas.
- Basta! Você fala demais, gata atrevida!
- Soltem Nino e eu se não vocês veram!
- Rapazes, arranquem-na os bigodes, para que fique quieta.
Estava na hora. Eles me subestimavam muito. Apliquei meus golpes de karate nos dois gatos pretos que seguravam a mim e Nino. Caíram em locaute.
- Peguem-na!
E saiu gato de tudo quanto é lado! Do céu, do asfalto, de trás das estrelas. Não importava, não eram páreos para mim. Bastou um golpe de “garras coletiva” e metade foi eliminado. Foi possível ver apenas rabo de nego pra lá, pata de ciclano pra cá. Meia dúzia veio em nossa direção. Invoquei meus poderes ocultos, dizendo “miau” ao contrario três vezes, um circulo de fogo se fez ao redor de mim e Nino. Foi feito churrasco de gato da forma mais literal possível. Tinha mal passado, bem passado e grelhado. Três foram atrás de Nino, que gritava feito louco.
- Aliceeeee!
- Não tenha pânico, Nino!
Foram pegos pelo rabo. Girei todos no ar, e os lancei tão alto, que é capaz terem caído na praça do Jardim Miriam.
- Ahá!
- Atrás de você, Alice! – Gritou Nino.
Era uma maçã podre. Acertou minha cabeça em cheio. Era o chefão, Pimpão. Havia me esquecido dele. Me arrastou pelas patas traseiras até o fim do beco.
- Achou que iria escapar, Alice? Vingarei-me de você.
- Me solta, perneta!
- Petulante!
Suas garras enormes se revelaram. Juro que me arrepiei até onde não se é possível arrepiar no corpo de um gato. Eram enormes! Estava acabada.
Eis que surge Nino, o gato louco!
- Yaaaaaaaaaa!
Foi preciso apenas uma chave de perna no pescoço gordo de Pimpão, e o gato branco caiu desmaiado. Tinha incorporado o Jack Chan encapetado em Nino!
- Caramba, Nino! Não conhecia esse teu lado “Ninja Assasino”.
- Me empolguei com a temática do momento.
- Ei! Ajudem-nos!
Eram os gatos presos na parede. Estavam todos muito machucados. Soltamos os dois.
- Pobres gatinhos...
- Vocês nos salvaram! Como podemos agradecer?
- Me mande um cheque por Sedex e ficamos quites.

Nino e eu voltamos até o escadão.
- Só você para nos enfiar em uma dessas, Alice.
- Relaxa, Nino. Te pago uma tigela de leite e você fica bem de novo.

De volta ao telhado, pulei até a janela do quarto. Estava fechada. Bati nela. Arranhei. Miei. No silêncio da noite, pude ouvir mesmo de fora o som da cama rangendo, o peso de um pé pisando o chão, resmungos e a janela abriu.
- Isso é hora de chegar, Alice? – Protestou Thauany. Parecia uma louca com os cabelos desgrenhados e a cara amassada. Olhei para ela como quem não sabia de nada e entrei.
- Vamos rever esses seus horários amanhã.
Miei em protesto. Ela quer que eu viva aqui nesse quarto, com essa cachorra chata e sedentária? Mas nunca!
Ela voltou para cama, e me aconcheguei ao seu lado. Foi uma noite longa e cansativa. 

segunda-feira, 13 de dezembro de 2010

Dor e Marlboro Light.

Fumando um cigarro que não queria, Katharine caminhava na Angeles Boulevard sem determinar algum rumo. Era fim de ano. Os grandes prédios de nomes importantes competiam entre si para ver quem tinha a decoração mais apaixonante e natalina, divertindo as famílias que faziam questão de presenciar aquele show de luzes coloridas no breu da noite. Era quase onze horas e céu estava coberto de estrelas. Engraçado como as estrelas parecem ter mais brilho quando o nosso está em falta. Ouviam-se violinos. Noite amarga de sexta-feira. Acabará de assistir a peça de teatro da qual ansiará durante um mês. Talvez ela fizesse menos sentido se cada encenação não fosse tão biográfica. No final entrelaçava as pernas ao sair do auditório, embargada de magoa. Renderia ressaca no dia seguinte.
Seus olhos ainda ousaram percorrer na saída do Light Theater, tinha a suave camada de esperança adoçando seu paladar de que encontraria aquele corpo esguio, escorado de braços cruzados em frente à estação de metrô. Então ele a pediria perdão, ela talvez tentasse negar silenciosamente para somente dizer a si que tentou, mas na verdade estava cedendo mesmo antes de vê-lo. Ele a levaria para casa, e então fariam amor a noite toda, a madrugada inteira e quando acordassem, praticariam esse ato cheios de sede novamente e tomariam café juntos. Mas ele não estava lá. E acredite, o que ela viu foi uma porção de casais iluminados pelas luzes dos prédios e pareciam muito felizes, só porque ela não era.
Agora, no segundo cigarro indesejado, proporcionava a si algumas opções do que fazer aquela noite; talvez um bar, a ultima sessão de cinema ou talvez a guia de um carro fortemente contra sua cabeça. De preferência um Porsche, por mais que a desgraça seja profunda e intensa jamais desejaria que o fim de sua vida fosse com o crânio sob o pneu liso de uma Chevette.
Ameaçou entrar em três bares. Pensou sentir dois cheiros iguais ao dele. Perderá a conta de quantas vezes desejou morrer.
Katharine se deu ao luxo de encarar todos os rostos quando atravessava as cumpridas ruas da avenida, almejava encontrar aquele rosto. Chegando do outro lado, ria de si mesma, julgando completamente patético aquele ato em vão.
Mas uma coisa era certa, seu nariz estava sempre erguido, seus olhos sempre calculistas por trás daquelas lentes grossas de uma miopia precoce. De fato as lágrimas rolavam, sim, e manchavam a maquiagem feita exclusivamente para esconder qualquer traço que alegasse algo como tristeza, magoa e melancolia.
E se ela ligasse de uma cabine telefônica pedindo perdão por algo que ela não fez? “Me perdoe. Me leve com você”, talvez bastasse para que sua próxima respiração fosse menos pesada e secasse a próxima lágrima. Mas lembrou que o papel azul marcava o telefone dele estava sobre a mesa do seu quarto. Katharine sabia que não havia errado em nada. Havia depositado toda sua alma e seu ser no ser dele para que tudo fosse correto, numa interpretação diferente de coisas corretas.
Tudo bem; foda-se, a noite já estava perdida. Só queria que seus passos tivessem algum rumo. Só isso.
Uma caminhada longa até lugar nenhum. Sumiu na noite com um vácuo no peito. Dois maços de cigarros indesejados.