segunda-feira, 22 de agosto de 2011

As aventuras de Lady Alice - Os Herdeiros II.

Uma semana se passou e eu já estava me esquecendo do episódio de noites passadas. Estava tudo normal: Natasha, a cachorra gorda mórbida continuava gorda e mórbida, Nino permanecia tonto e minha dona a cada dia passa mais tempo na frente daquela tela junto duma coisa que ela fica apertando com a ponta dos dedos.
 Era um final de tarde quente e estava tudo lindo, florido, cheiroso. A casa estava calma e eu cochilava sobre o livro que Anny havia esquecido sobre a cama. Mas tinha uma atmosfera estranha pairando no ar... Sabe quando você sente que algo de ruim vai acontecer?
Ah! Deixa disso, Alice! Isso é coisa de humano pirado, gatos não sentem isso.
Mas um barulho se fez ouvir dentro do quarto. O que seria aquilo? Estava todos no andar de baixo, inclusive a cadela obesa. Deve ser psicológico – pensei.
Outro roído.
Não! Não era psicológico.
Olhei para a janela; estava aberta. E sobre o armário surgiram aqueles olhos azuis. Só houve tempo dos nossos corpos se chocarem e as unhas de ambos saltarem.
Era o maldito do Pirata!
- Eu disse que te pegaria, Alice! E agora você vai se arrepender de todas as vezes que me ofendeu e fugiu de mim!
- Me solta, Pirata, ou você vai se arrepender!
Era óbvio que eu estava blefando. Eu não fazia a mínima idéia do que fazer. Jurava meus bigodes que ele não voltaria, que aquele papo de “Eu te pego, Alice” era lenda. Quem me dera.
- Fique quietinha, Alice. Vai ser doloroso, mas rápido, eu prometo.
Não deu outra; meti as unhas na cara daquele pilantra.
- Maldita!!! – esbravejou.
Deu tempo de sair pela porta e, correndo em pânico, passar pelo corredor até perto da escada, mas me pegou novamente. Toda aquela adrenalina e medo me travavam e parecia uma retardada.
Ele cumpriu com o que dissera: ele me pegou. Foi rápido, da maneira como prometeu.
- Alice!
Ouvi a voz de Anny e vi a urgência dela, entre aquela afobação de tentar sair das garras daquele patife,  em subir as escadas e me socorrer.
- Solta ela, seu nojento!
E acertou suas costelas com a ponta daquele All Star remendado. Pirata saiu correndo atordoado cheio de medo e foi embora.
- O que ele fez com você, minha rainha? Fala comigo, Alice...
Eu não queria que ela me tocasse. Estava acuada no canto da parede, na defensiva, assustada, frágil e com medo.
Uma coisa pegajosa e vermelha escorria do meu rosto.
- Alice, seu rosto está sangrando? Meu Deus! Mãe está saindo sangue do rosto da Alice! Me ajuda!
Ela tentou por a mão em mim de novo. Neguei outra vez. Outra, outra e mais outra vez. Até que com insistência e amor, eu deixei que o colo dela me acalmasse. Toda aquela sensação estranha que eu sentia e não sabia o que era acabou virando só um detalhe.
E dormi.


- É minha culpa, Alice! A culpa é toda minha! Mande-me para a guilhotina, eu mereço!
Esse era Nino, no seu momento de dramaturgia grega.
- Eu deveria estar lá pra te proteger, é tudo culpa minha!
E o Oscar de maior gato dramático vai para...
- Arranque meus bigodes com uma pinça, Alice! Talvez eu me sinta menos culpado.
...Nino!!!
- Ah! Chega de asneira! Você está a quase uma hora se desculpando por nada.
- Como por nada, Alice?! Olha esse curativo da Hello Kitty na tua testa, eu deveria estar lá para te proteger.
- Nino!
- E se ele voltar?!
Era uma possibilidade distante pra mim, algo que não poderia tornar a acontecer e que eu preferia acreditar assim.
Estávamos sentados no telhado do vizinho e uma conversa na janela de casa me chamou atenção.
- Anny?
- Sim, mãe?
- Sabe aquele gato vagabundo que fez mal a Alice?
- O que tem aquele (adjetivo chulo censurado pela autora)?
- Morreu atropelado.
E um grito de “Aleluia!” ecoou no quarteirão.
- Você ouviu isso, Nino?!
- Que vai passar Os Batutinhas na Sessão da Tarde? Ouvi da TV do Seu Enersto. Isso não é novidade, passa todo mês...
- Não, cabeça de peixe. O Pirata morreu!
- Santo Noé da arca dos bixinhos! This is miracle!
- Isso merece uma festa! Hoje vamos para o apê do Algodão Doce e não saímos de lá até que um de nós dois caia embargo de leite fermentado.
- Leite fermentado? To dentro!
E foi festa a madrugada inteira. Tive de levar Nino nas costas de tão embriagado.
Desde então estava correndo tudo perfeitamente bem. Até que algumas semanas se passaram e um problema cresceu. Literalmente.
Cássia, a mãe de Anny, entrou no quarto enquanto eu tomava meu banho do fim das tardes.
- Anny, a Alice está grávida.
Epa! Que papo é esse, minha senhora?
- Claro que não, mãe! Ela só engordou alguns quilinhos – rebateu imediatamente minha dona, com a mesma feição incrédula que certamente eu carregava.
- Dá para ser um pouco menos ingênua? Veja só o tamanho da barriga dessa gata! Vai dizer que você não percebeu?
- Não que eu não tenha, mas... Ela não está preparada para enfrentar a maternidade! Ela é só uma criança!
Suspiros.
Tempos depois fui descobrir o que significava esse termo “estar grávida”. É quando um monte de bixinhos parecido com você cresce dentro da tua barriga, e uma hora eles têm de sair.
Até então tudo bem, achei o maior barato saber que tem um bocado de Alicinhas dentro de mim, se mexendo e interagindo umas com as outras. O que doeu foi saber a origem daquelas Alicinhas. Que Alicinhas como essas para serem feitas, era preciso uma gatinha e um gatinho.
E que aquele carnaval dentro da minha barriga, tinha sido promovido por Pirata.

Eu não estava livre dele; fazia parte de mim agora.


(Continua)


As Aventuras de Lady Alice - Os Herdeiros (CAP. 1) : http://migre.me/5xBmf
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sexta-feira, 19 de agosto de 2011

As aventuras de Lady Alice - Os Herdeiros.

Ouvi arranhões na janela de metal. Acordei num susto; dormia entre as pernas de Anny naquele edredom com cheiro de eucalipto do qual eu tanto gostava. Tentei ignorar enfiando a cabeça sob as patas, mas o roído não parava e aquilo estava começando a me aborrecer. Subi na cabeceira da cama sem acordá-la e, com os olhos estreitos, prestava o máximo de atenção.
- Quem está ai? – perguntei cautelosa.
- Sou eu, Alice!
Era um timbre familiar, mas eu sabia que não podia confiar nos meus sentidos já que estava semi-acordada.
- “Eu” tem nome, meu bem!
- Nino! É o Nino! Abra logo, Alice! É difícil se equilibrar aqui!
- E quem me garante que é o Nino? Diz qual é a senha!
- Senha?! Que história é essa de senha, Alice?
- Sem senha, não abro a janela.
- Hã... Deixa-me ver... Pelúcias?
Abri a janela na hora. Era mesmo Nino, com cara de encafifado.
- Ué? Era mesmo essa a senha?
- Não existia senha alguma. Eu sabia que só você julgaria uma coisa tão idiota como uma – ri baixinho - Mas me diz o que está acontecendo? Sabia que eu estava no meio de um sonho pra lá de legal?
- É que... É que tem um alguém querendo te ver e... Você tem de vir comigo agora mesmo.
Joguei-lhe um olhar estreito. Nino estava agindo de maneira muito estranha.
- Ih... Tem espinho nesse atum... Que está havendo, Nino? Quem está querendo me ver?
Nino parecia tenso. Acho que vi uma gota de suor escorrendo no teu rosto peludo. Eu só o via assim quando ele se sujava logo após chegar do petshop e sabia que levaria uma baita bronca de Daiane.
- Eu não posso dizer, Alice! Eu não posso dizer que o vira-lata do Pirata quer falar com você, porque ele não quer que você saiba e, caso souber, ele vai me enforcar com o esqueleto de um peixe!
Me espantei ao ouvir o teu nome. Um calafrio percorreu minha espinha, me custava lembrar toda maldade que esse tirano provocou.
- Pirata?! Ele ainda está vivo?
- Santo dos gatos! Soltei a informação!
- O que aquele zé ruelas quer comigo, Nino?
- Isso eu não sei, de verdade. Mas você precisa vir comigo.
Olhei para a lua, estava linda aquela noite. Logo para dentro do quarto, naquela pequena abertura da janela e via o rosto adormecido de Anny.
Talvez fosse a ultima vez que a visse.
Mas eu, como uma gata temida e destemida, não corria fora assim não.
- Me leve até ele.

Pirata estava me esperando na saída da viela. Eu já sabia disso mesmo antes de chegar, o fato é que o cheiro horrível dele acusava sua presença a quilômetros de distancia.
Aquele sujeito não prestava. Aterrorizava a vida de todos os gatos do Campanário e fora dele. Nino é exemplo de toda a bullying que Pirata foi capaz de praticar contra ele e o quão fez esse pobre gato ficar complexado devido sua patinha torta.
Assim que cheguei seu olho brilhou (pois um era de vidro e eternamente brilhava) de malícia e fez uma breve reverencia.
- Milady! Quanto tempo!
Ele continuava a mesma desgraça de sempre: Tinha os pelos encardidos, mas toda aquela sujeira quebrava em teu olho azul frio e profundo. Patas machucadas, bigodes cortados e cicatriz na costela. Era assustador.
Todavia, não me punha medo.
- Oi – respondi sua saudação, seca.
- Bom trabalho, Nino. Agora pode dar um fora.
- Eu fico!
Nino protestou, mesmo aparentemente estar morrendo de medo daquele vagabundo.
- Fica sossegado, Nino. Pode ir – Amaciei o camarada.
- Mas Alice...
- Faz o que ela disse, seu mauricinho – disse Pirata, de saco cheio.
E Nino se foi. Confesso que sem a presença dele ficava um pouco desconfortável, mesmo ele somente atrapalhando.
- Só nós dois, milady... Sentiu saudades?
Deu um passo a frente, mas logo recuei.
- Pensei que você tivesse morto.
- Esqueceu que nós temos sete vidas?
- Pra que voltou, afinal? Te expulsaram da onde você estava?
- Voltei por você, Lady Alice. Não podia ir mais longe sem antes... te possuir.
- Cara, por que não vai ver se eu estou fazendo intercâmbio lá na Babilônia? Sai do meu pé!
Dei as costas para ele e pretendia voltar para casa. Aquele retardado só tomava meu tempo.
Mas um golpe pelas costas me fez cair e quando me dei por mim, ele tinha imobilizado meu corpo. 

Regra #1: Nunca dê as costas para um inimigo.

Mas eu sempre me esqueço disso!

- Continua atrevida e petulante... Do jeitinho que eu gosto...
- Me solta, sua flanela de mecânico!
- É melhor ficar quietinha, Alice. Não é hora de me provocar.
- Por que acha que eu me envolveria com um andarilho que mora dentro de pneu feito você? Cai fora, criolo!
Senti sua pata afundando em meu pescoço. Já estava ficando difícil respirar. Nenhuma alma samaritana passava naquele instante perto da cena do atentado, nem mesmo Nino, o gato atrapalhão, que costuma chegar sempre quando a coisa ficava preta pro meu lado.
- Já disse para me soltar!
E desferi uma joelhada entre suas pernas. O babaca caiu na hora a se contorcer.

Regra #2: Quando seu inimigo é um macho, sempre apele para as partes baixas.

Era a hora da fuga. Levantei e corri como se não houvesse amanhã.
- Eu vou te pegar, Alice! Não importa onde estiver!
Aquele miado que ecoou entre a ruazinha que dava até em casa só me fez correr mais rápido, e em segundos já estava arranhando a janela. Aquela sensação de que ele chegaria a qualquer instante e me atacaria pelas costas quase me fez cair dura no chão.
- De novo, Alice?
Reclamou Anny, preguiçosa, sem mesmo se dar ao trabalho de abrir os olhos.
Mal ela entreabriu a janela e eu já estava dentro do quarto. Nunca fiquei tão feliz de ouvir aquela voz rouca de quem acabará de acordar derramando sermão.
Aquela noite eu não sairia de perto dela por nada.




(Continua)




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